quarta-feira, outubro 24, 2007

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM




Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca,

Palavras de amor, de esperança,

De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas

Quando a noite perde o rosto,

Palavras que se recusam

Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas

Entre palavras sem cor,

Esperadas, inesperadas

Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama

Letra a letra revelado

No mármore distraído,

No papel abandonado)

Palavras que nos transportam

Aonde a noite é mais forte,

Ao silêncio dos amantes

Abraçados contra a morte.





Alexandre O'Neill

terça-feira, outubro 23, 2007

FADO PORTUGUÊS

O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Ai, que lindeza tamanha,
meu chão, meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.
Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.
Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.
Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.



José Régio

sexta-feira, outubro 19, 2007

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados
que eu ando a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento num corpo
que já não é seu num rio
que desapareceu onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco .




Mário Cesariny "(1923-2006)

quarta-feira, outubro 17, 2007

HOJE DEITEI-ME AO LADO DA MINHA SOLIDÃO





Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do meu próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
o mistério das palavras maduras
ou a brancura de um amor que nos prendia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até ouvir
o meu sangue jorrar na voz das fontes.




Eugénio de Andrade


terça-feira, outubro 16, 2007

PARA TODAS AS MULHERES DO MUNDO





Alma de mulher
de
Alexandre Araújo


Nada mais contraditório do que "ser mulher"...
Mulher que pensa com o coração,
age pela emoção e vence pelo amor.
Que vive milhões de emoções num só dia
e transmite cada uma delas, num único olhar.
Que cobra de si a perfeição
e vive arrumando desculpas
para os erros, daqueles a quem ama.
Que hospeda no ventre outras almas,
dá a luz e depois fica cega,
diante da beleza dos filhos que gerou.
Que dá as asas, ensina a voar
mas não quer ver partir os pássaros,
mesmo sabendo que eles
não lhe pertencem.
Que se enfeita toda e perfuma o leito,
ainda que seu amor nem perceba mais tais detalhes.
Que como uma feiticeira transforma em luz e sorriso
as dores que sente na alma,
só para ninguém notar.
E ainda tem que ser forte,
para dar os ombros para quem neles precise chorar.
Feliz do homem que por um dia souber
entender a alma da mulher!

sábado, outubro 13, 2007

TÉDIO


Vontade preguiçosa de apanhar meus nervos
e fazer uma rede para me deitar...
e fechar os meus olhos, como que cansado
de olhar...
e dormir, mas dormir esse sono das pedras
que não podem sonhar...
ser folha, folha morta, caindo
embalada pelo ar...
barco solto, sem leme, sem velas, sem nada
ao sabor inconstante do mar
a boiar...
Vontade preguiçosa de encostar a vida
num canto para descansar...
E soltar-me em mim mesmo num canto
num canto, para descansar...
E soltar-me em mim mesmo, e soltar-me e caír
e deixar-me ficar,
sem ter vontade ao menos para bocejar...
Ah!... Vontade preguiçosa de não terminar
estes versos morrendo em ar... em ar... em ar.



J.G.Araújo Jorge

terça-feira, outubro 09, 2007

FOLHAS DE ROSA


Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol
Eu vou falar com elas em segredo ...
E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente ...
Pelo copinho de cristal e pata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que triste me deslumbra e m'embriaga
O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que refletia outrora tantos risos,
E agora reflete apenas pranto,
E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...
Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mal fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia....





Florbela Espanca

sábado, outubro 06, 2007

MAR


Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós.
E tão fundo intimamente a tua voz.
Segue o mais secreto bailar do meu sonho.
Que momentos há em que eu suponho
seres um milagre criado só para mim.

Meio-dia.
Um canto da praia
sem ninguém.


Livre e verde a água ondula.
Graça que não modula, o sonho de ninguém.

Casa branca em frente ao mar
enorme, com o teu jardim de areia
e flores marinhas.
E o teu silêncio intacto
em quem dorme o milagre das coisas
que eram minhas.

Não há fantasmas nem almas,
e o mar imenso, solitário e antigo,
parece bater palmas.

Dia do mar no ar, dia alto.
Onde os meus gestos são gaivotas
que se perdem, rolando sobre as ondas,
sobre as nuvens.

Aqui nesta praia onde não há nenhum
vestígio de impureza,
aqui onde há somente ondas
tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
aqui o tempo apaixonadamente
encontra a própria liberdade.

Há muito que deixei aquela praia
de grandes areais e grandes vagas.
Mas sou eu ainda quem na brisa respira.
E é por mim que espera cintilando
a maré que vasa.

De todos os cantos do mundo,
amo com um amor mais forte e mais profundo,
aquela praia extasiada e nua
onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Mostrai-me as anemonas,
as medusas e os corais do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.

A minha pátria é onde o vento passa,
a minha amada é onde os roseirais dão flor,
o meu desejo é o rastro que fica das aves,
e nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Reino de medusas e água lisa,
reino de silêncio luz e pedra.
Habitação das formas espantosas,
coluna de sal e círculo de luz.
Medida da Balança misteriosa.

Mar, Metade da minha alma
é feita de maresia.

Luz inunda a planície do mar,
mas ninguém cria gestos luminosos.
Sem que ninguém forme gestos na sua luz.

As ondas quebravam uma à uma.
Eu estava só com a areia
e com a espuma do mar
que cantava só p’ra mim.




Sophia de M. Breynner