sábado, junho 29, 2024

 O RETRATO FIEL


Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!

Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.

Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;

naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.

Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.

Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

sexta-feira, junho 28, 2024

 Esta Gente

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
Sophia de Mello Breyner Andresen.

quinta-feira, junho 27, 2024

 A LUA FOI AO CINEMA

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava para ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!
Paulo Leminski, Melhores poemas

segunda-feira, junho 17, 2024

 NUNCA TE ACHEI NEM TE VI]


Nunca te achei nem te vi.
Mas, por imaginação,
Dói de ti meu coração:
Tenho saudades de ti.

Nunca, amor, te conheci.
Mas, sem saber se existes,
Meus olhos de ti estão tristes:
Tenho saudades de ti.

Quando outra achei, te perdi,
Só por a ter encontrado
Não sei se és sonho ou pecado
Sei que, enganado e exilado,
Tenho saudades de ti.

*

3-11-1935

Fernando Pessoa

quarta-feira, junho 05, 2024

 

Não me peçam razões…

Não me peçam razões, que não as tenho,

Ou darei quantas queiram: bem sabemos

Que razões são palavras, todas nascem

Da mansa hipocrisia que aprendemos.

 

Não me peçam razões por que se entenda

A força de maré que me enche o peito,

Este estar mal no mundo e nesta lei:

Não fiz a lei e o mundo não aceito.

 

Não me peçam razões, ou que as desculpe,

Deste modo de amar e destruir:

Quando a noite é de mais é que amanhece

A cor de primavera que há-de vir.

 

 José Saramago, em “Os poemas possíveis”.

terça-feira, junho 04, 2024

 


As pessoas crescidas

"As pessoas crescidas fui-as conhecendo de baixo para cima à medida que a
minha idade ia subindo em centímetros, marcados na parede pelo lápis da mãe.
Primeiro eram apenas sapatos, por vezes descobertos sob a cama, enormes, sem pé
dentro, e logo calçados por mim para caminhar pela casa, erguendo as pernas como um
escafandrista, num estrondo imenso de solas. Depois tomei conhecimento dos joelhos
cobertos de fazenda ou de meias de vidro, formando ao redor da mesa debaixo da qual
eu gatinhava uma paliçada que me impedia de fugir. A seguir vieram as barrigas de
onde a voz, a tosse e a autoridade saíam apesar do esforço inútil de suspensórios e de
cintos.
Ao chegar à altura da toalha aprendi a distinguir os adultos uns dos outros pelos
remédios entre o guardanapo e o copo: as gotas da avó, os xaropes do avô, as várias
cores dos comprimidos das tias, as caixinhas de prata das pastilhas dos primos, o vaporizador da asma do padrinho que ele recebia abrindo as mandíbulas numa
ansiedade de cherne. Compreendi por essa época que tinham o riso desmontável:
tiravam as piadas da boca e lavavam-nas, a seguir ao almoço, com uma escovinha
especial.
Aconteceu-me encontrá-las sob a forma de gargantilhas de dentes num estojo de
gengivas cor-de-rosa escondidas por trás do despertador nas manhãs de domingo, a
troçarem dos rostos que sem elas envelheciam mil anos de rugas murchas como flores
de herbário devorando os lábios com as suas pregas concêntricas.
Já capaz pelo meu tamanho de lhes olhar a cara, o que mais me surpreendia
neles era a sua estranha indiferença perante as duas únicas coisas verdadeiramente
importantes do mundo: os bichos-da-seda e os guarda-chuvas de chocolate. Também
não gostavam de coleccionar gafanhotos, de mastigar estearina nem
de dar tesouradas no cabelo, mas em contrapartida possuíam a mania
incompreensível dos banhos e das pastas dentífricas e quando se referiam diante de
mim a uma parente loira, muito simpática, muito pintada, muito bem cheirosa e mais
bonita que eles todos, desatavam a falar francês olhando-me de banda com
desconfiança e apreensão.
Nunca percebi quando se deixa de ser pequeno para se passar a ser crescido.
Provavelmente quando a parente loira passa a ser referida, em português, como a
desavergonhada da Luísa. Provavelmente quando substituímos os guarda-chuvas de
chocolate por bifes tártaros. Provavelmente quando começamos a gostar de tomar
duche. Provavelmente quando cessamos de ter medo do escuro. Provavelmente quando
nos tornamos tristes. Mas não tenho a certeza: não sei se sou crescido.
Claro que acabei o liceu, andei na faculdade, tratam-me por senhor doutor e há
séculos que ninguém se lembra de me mandar lavar os dentes. Devo ter crescido, julgo
eu, porque a parente loira deixou de me sentar ao colo e de me fazer festas no cabelo
provocando em mim uma comichão no nariz que me tornava lânguido e que aprendi
mais tarde ser o equivalente do que chamam prazer. O prazer deles, claro, muito menor
que o de mastigar estearina ou aplicar tesouradas na franja. Ou rasgar papel pela linha
picotada. Ou mostrar um sapo à cozinheira e vê-la tombar de costas, de olhos revirados,
derrubando as latas que anunciam Feijão, Grão e Arroz e que na realidade contêm
massa, açúcar e café.
Devo ter crescido. Se calhar cresci. Mas o que de facto me apetece é convidar a
parente loira para jantar comigo no Gambrinus. Peço ao criado que nos traga duas
doses de guarda-chuvas de chocolate e enquanto chupamos a bengalinha de plástico
mostro-lhe a minha colecção de gafanhotos numa caixa de cartão. Posso estar enganado
mas pela maneira como me fazia festas no cabelo, com olhos tão jovens como os meus,
quase que aposto que ela há-de gostar."

António Lobo Antunes
Livro de Crónicas