segunda-feira, maio 27, 2024

 


MENINA BONITA
"Menina bonita
não sobe à janela
porque o bicho mau
carrega com ela.
Se quer alvos ovos
arroz com canela
menina bonita
não sobe à janela.
Não sobe à janela
não sobe à varanda
porque lá está posta
uma fita de ganga.
E dentro da panela
uma fita amarela
e dentro do poço
a casca do tremoço
e lá no telhado
um gato malhado
e na chaminé
uma caixa de rapé
e no meio da rua
uma espada nua
e atrás da porta
uma vara torta
e dentro do ninho
um passarinho:
deixa-o no morno
e dá-lhe pãozinho."
Alice Vieira


                                 LADO A LADO

Pode o mundo andar adiantado
Nas mil e uma razões
Para gritar e apartar.
Caminharei a teu lado
Enquanto puder andar.
Pode o mundo ficar nublado
Sem o canto das aves,
Sem sombra de paz.
Seguiremos lado a lado
Não ficaremos para trás.
Levaremos o passado,
O presente e o depois
De branco nos vestiremos
E seguiremos lado a lado
Seremos sempre dois.
Quantas vezes teremos trocado
Palavras duras, horas amargas
E não valeram de nada.
Continuamos lado a lado
Fazemos a nossa estrada.
Tantos casos inacabados
Tanta coisa por dizer
E a nossa voz em novelo.
Caminharemos abraçados,
Amo o branco do teu cabelo..
CARLOS CAMPOS, poema inédito

 Não há vagas


O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar 

quinta-feira, maio 23, 2024

 'Depois?'


"Depois eu ligo
Depois eu faço
Depois eu falo
Depois eu mudo
Depois eu passeio
Depois eu viajo

Deixamos tudo para depois, como se depois fosse o melhor.

O que não entendemos é que...
Depois o café esfria,
Depois a prioridade muda,
Depois o encanto se perde
Depois o cedo fica tarde,
Depois a saudade passa,
Depois tanta coisa muda,
Depois os filhos crescem,
Depois a gente envelhece,
Depois o dia anoitece,
Depois a vida acaba."

António Lobo Antunes

terça-feira, maio 21, 2024

 Doença

O médico serenou Juca Poeira.
Que ele já não padecia da doença
que ali o trouxera em tempos.
E o doutor disse o nome
da falecida enfermidade:
“Arritmia paroxística supraventricular”
Juca escutou, em silêncio,
com pesar de quem recebe condenação.
As mãos cruzadas no colo
diziam da resignada aceitação
Por fim, venceu o pudor
e pediu ao médico
que lhe devolvesse a doença.
Que ele jamais tivera
nada tão belo em toda a sua vida.

Mia Couto

 POEMA ESQUISITO

"Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.
Adélia Prado

sexta-feira, maio 03, 2024

 

QUARTA-FEIRA, 18 DE NOVEMBRO DE 2009

Ruy Belo

E tudo era possível
.
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
.
Chegava o mês de Maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
.
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
.
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
.
Ruy Belo

 O Estudante Alsaciano

    Antigamente, a escola era risonha e franca.
    Do velho professor as cans, a barba branca,
    Infundiam respeito, impunham sympathia,
    Modelando as feições do velho, que sorria
    E era como creança em meio das creanças.
    Como ao pombal correndo em bando as pombas mansas,
    Corriam para a escola; e nem sequer assomo
    De aversão ou desgosto, ao ir para ali como
    Quem vae para uma festa. Ao começar o estudo,
    Elles, sem um pesar, abandonavam tudo,
    E submissos, joviaes, nos bancos em fileiras,
    Iam todos sentar-se em frente das carteiras,
    Attenta, gravemente — uns pequeninos sabios.
    Uma phrase a animar aquelle bando imbelle,
    Ia ensinando a este, ia emendando áquelle,
    De manso, com carinho e paternal amor.

    Por fim, tudo mudou. Agora o professor,
    Um grave pedagogo, é austero e conciso;
    Nunca os labios lhe abriu a sombra d’um sorriso
    E aos pequenos mudou em calabouço a escola
    Pobres aves, sem dó metidas na gaiola!
    Lá dentro, hoje, o francez é lingua morta e muda:
    Unicamente o allemão ali se falla e estuda,
    São allemães o mestre, os livros e a lição;
    A Alsacia é allemã; o povo é alemão.
    Como na propria patria é triste ser proscripto!
    Frequentava tambem a escola um rapazito
    De severo perfil, energico, expressivo,
    Pallido, magro, o olhar intelligente e vivo
    — Mas de intima tristeza aquelle olhar velado
    Modesto no trajar, de lucto carregado...
    — Pela patria talvez! — Doze annos só teria.
    O mestre, d’uma vez, chamou-o á geographia:

    — "Dize-me cá, rapaz... Que é isso? estás de lucto?
    Quem te morreu?"
    — "Meu pae, no último reduto,
    Em defeza da patria!"

    — "Ah! sim, bem sei, adeante...
    Tu tens assim um ar de ser bom estudante.
    Quaes são as principaes nações da Europa? Vá!"

    — "As principaes nações são... a França..."
    — "Hein? que é lá?...
    Com que então, a primeira a França! Bom começo!
    De todas as nações, pateta, que eu conheço,
    Aquella que mais vale, a que domina o mundo,
    Nas grandes concepções e no saber profundo,
    Em riqueza e esplendor, nas lettras e nas artes,
    Que leva o seu domínio ás mais remotas partes,
    A mais nobre na paz, a mais forte na guerra,
    D’onde irradia a sciencia a illuminar a terra,
    A maior, a mais bella, a que das mais desdenha,
    Fica-o sabendo tu, rapaz, é a Allemanha!"

    Elle sorriu com ar desprezador e altivo,
    A cabeça agitou n’um gesto negativo,
    E tornou com voz firme:

    — "A França é a primeira!"
    O mestre, furioso, ergue-se da cadeira,
    Bate o pé, e uma praga energica lhe escapa.

    — "Sabes onde está a França? Aponta-m’a no mappa!"
    O alumno ergue-se então, os olhos fulgurantes,
    O rosto afogueado; e emquanto os estudantes
    Olham cheios de assombro aquelle destemido,
    Ante o mestre, nervoso, audaz e commovido,
    Timido feito heróe, pygmeu tornado athleta,
    Desaperta, febril, a sua blusa preta,
    E batendo no peito, impavida, a creança
    Exclama:
    — "É aqui dentro! aqui é que está a França!"

                                                                                   Acácio Antunes